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Mais que um mero Machado

Machado faria hoje 184 anos. Talvez em breve vejamos humanos extremamente desinteressantes capazes de pagar por avanços da medicina que os levem ainda mais longe. Mas Machado, o gênio da raça, viveu somente 69 anos, sendo 52 destes sob peso da escravidão no Brasil. Machado era negro. Mas ao que consta, nunca foi escravo e, sim, filho de um descendente de negros alforriados e uma mãe açoriana. E nessa vida de privilégio para um negro da época, alcançou postos incomuns para um homem de sua condição: o exemplo usual é ter participado da fundação da Academia Brasileira de Letras, tendo sido seu presidente desde a fundação até a sua morte, por bons 10 anos.

Uma frase de sua autoria, destacada em sites de citações ou dedicados a Machado, talvez ofereça uma pista dessa condição incomum: “As aparências enganam; foi a primeira banalidade que aprendi na vida, e nunca me dei mal com ela.”

Eu fiz o Ensino Médio na primeira metade dos anos 1980, quando ainda chamava Segundo Grau. E foi uma professora negra de literatura que nos fez ler Memórias Póstumas de Brás Cubas. Hoje acredito que poucos de nós tenham lido. Tenho certeza de que eu, do alto dos meus 16-17 anos, não alcancei muita coisa de uma obra tão sofisticada. Mas lembro que me divertiu – a ironia encontrou morada em mim eu ainda era muito menina! Talvez fruto da convivência muito próxima com ingleses, escoceses e irlandeses, algo na trilha que levou à forma shandiana atribuída a Machado, sabe-se lá! Mas não me lembro de ter-nos sido dito que Machado era negro. As fotos que pipocaram nos trabalhos de escola também não me chamaram a atenção – para mim, era a foto de mais um autor. Também não me foi dito de que se tratava de um autor branco. A discussão simplesmente não apareceu. Mas se tivessem me perguntado, também não diria de pronto que Machado era branco. Na ingenuidade daquele momento, mas esperta para entender que devia existir um motivo para a pergunta, imagino que simplesmente responderia “acho que nunca pensei nisso!”

Poucos anos mais tarde, já na faculdade, não só Machado era negro, como era um negro não muito bem-visto por não ter dedicado sua obra a atacar a escravidão e o racismo. Eu ouvia esses debates calada, porque me parecia ler outra obra, mas talvez eu não tivesse entendido muita coisa... Não me sentia segura para discordar. Ao longo dos anos fui aprendendo que a ironia é para poucos, assim como aprendi que há lutas que demandam defesas mais contundentes, acirradas, violentas.

Parece ser esse o momento. Já se passou quase um século e meio desde que a escravidão foi abolida por decreto no Brasil. Mas tivemos praticamente 4 séculos de economia baseada no trabalho escravo. Quem leu Braudel sabe que a economia é um fenômeno de curta duração, para o qual basta um decreto para mudar tudo. Já as mentalidades, são fenômenos de longuíssima duração, inscritos na cultura, no modo de vida. Precisam de tempo. Demandam trabalho. Estamos no caminho e na luta. É terrível que seja lento para quem a transformação precisa ser urgente. Mas a História tem seu passo. Podemos acelerá-la, claro. Devemos buscar isso. Cometeremos erros e acertos. Cometeremos exageros e seremos excessivamente comedidos. Como dizia o poeta inglês William Blake, jamais saberemos o que é o bastante enquanto não soubermos o que é mais que bastante. O fundamental é estarmos atentos para não nos desviarmos do rumo pretendido por falta de reflexão. Sigamos. Avante!






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